João de Araújo Correia, Contos Durienses e Folhas de Xisto

Primeiro texto da série Autores que Cantaram o Douro

À Teresa e à Carla Pego

Terminado o giro que fiz em terras durienses, o bornal de dias felizes que lá passei continuava aberto, pedia mais qualquer coisa. Deitei‑me então à leitura de plumitivos que cantaram o Douro[1]. Aqui falo de um deles e de dois dos seus livros.

João de Araújo Correia nasceu em 1899, em Canelas do Douro, e morreu em 1985, na Régua. Médico e escritor, destacou‑se, no que ao beletrismo respeita, como contista e enquanto cronista. São dele as palavras que se seguem, tiradas de uma nota que antecede os textos do livro Horas Mortas: «O autor, médico na província, não pode escrever a horas vivas, horas diurnas em que trabalha ou passeia o mundo escorreito. Se quiser escrever uma carta, um artigo ou uma página de ficção, uma fantasia, é obrigado a saltar da cama a horas mortas – horas paradas em que o galo canta e a raposa se atreve com as capoeiras.»[2]

Foi um escrevente diserto, dono de estilo enxuto e de linguagem vernácula. Usava os vocábulos e a sintaxe do povo, não lhe faltava sentido de humor. O seu texto é simples, mas a quem o redigiu não se pode imputar falta de erudição. João de Araújo Correia colheu o insumo no exercício da medicina, nas terras do Douro e nas suas gentes. Não auscultou apenas as batidas do interior do corpo dos pacientes, também sondou almas e o ambiente que as envolvia. Resistiu ao lustre citadino, permaneceu na região do Douro. Aqui frequentou cardanhos e palacetes, andou perto dos que se viriam a tornar personagens dos seus enredos.

Se bem percebeu pessoas, tramas e costumes, com arte e imaginação os lançou no papel. Prende o leitor, mas prende‑o num éden. É mediante o trabalho de homens de letras como João de Araújo Correia, e não a martelo, que se pode incutir nos jovens e nos adultos o gosto pela leitura. Ainda bem que escreveu acerca do Douro, a literatura portuguesa agradece‑lho. Caso o seu universo tivesse sido o Mississípi e houvesse escrito em inglês, a sua fama galgaria fronteiras.

O livro Contos Durienses foi publicado pela primeira vez em 1941 e evidencia os sólitos atributos de redação do autor: o discurso é castiço, fluido, não contém enxúndia e enleia quem o lê. As estórias são curtas, mas em João de Araújo Correia less is really more.

Sente‑se a autenticidade dos personagens, mesmo no caso de figuras tão estranhas como o Soba de Mafómedes. João de Araújo Correia alude a situações que talvez fossem recorrentes no seu tempo, hoje não o são, por exemplo, a fome dos trabalhadores rurais (A Torre) ou a profunda imersão numa dimensão religiosa coartadora (penso na vida da jovem d’O Caiador das Almas).

De resto, vejo ali impropriedades, vícios e virtudes de muitos humanos e de muitas épocas, como o machismo (Um Caso de Honra), o classismo (A Lampreia, Mãe), a peçonha nas taramelas da província (O Caiador das Almas), a maldade (História de Uma Criada Velha, Mãe) e a auri sacra fames ou, quando menos, o olho no património de outrem (A Última Fidalga, A Primeira Mulher) — por serem idóneos para servir de pábulo à boa literatura, é mais fácil identificar vícios do que virtudes.

Por vezes, a composição é agradável, mas o respetivo final não empolga quem lê. Há, contudo, narrativas em que o remate surpreende (O Caiador das Almas, O Escritor, Mestre Simão), é bonito (História de Uma Criada Velha) ou dá senha de pincelada humana (Mãe).

O meu conto duriense predileto é O Pouca‑Roupa, o drama de um patego que odiava os ricos — atacava‑os com pedras, vandalizava os seus bens, cuspia no chão à sua passagem — e que, depois de enriquecer, passou a imitá‑los. A criatura era ridícula: obrigava a mulher a guisar bolacha Maria com frangos e coelhos e, em vez de broa, comia pão de ló. Por causa da sua necedade, acabou na pobreza extrema.

Também Folhas de Xisto, de 1959, é um monumento ao conto curto, à fraseologia regional e à escrita descarnada, desprovida de enfeites tontos. A seu jeito leve, a obra fica no espírito de quem a lê.

Como em Contos Durienses, prevalece o elemento humano e o traço idiossincrático — senti‑me longe de Bruxelas, onde a cada triquete lido com seres que agem de modo robotizado.

De novo, João de Araújo Correia toca o classismo (de D. Custódia em A Eleia) e o machismo. O Esteves de Linhas Tortas quadra com um tipo de homem que ainda conheci no Portugal do sexismo atávico: um marialva que desprezava a consorte e se gabava das suas andanças com outras mulheres.

A Luz Eléctrica, conto que nem três páginas tem, é um tratado acerca da inveja e O Juiz Substituto é um mimo de estória acerca da jactância. Na História dum Pastor, alma simples enuncia fórmula lapidar: «Nenhum fruto se livra de ser mordido em sonhos.»[3]

Surgem os códigos, estranhos ao Estado de Direito, próprios da gente de terra pequena e passíveis de gerar respostas materializadas em agressão física (Um Rapaz da Terra). Bem assim, João de Araújo Correia devolve ao leitor que os conheceu a realidade dos lugarejos em que não havia divisão do trabalho — o cauteleiro de Manhã Perdida era também engraxador e vendedor de jornais. Atente‑se na deliciosa descrição desse homem, «que lembrava uma galinha riça, pelo número de cautelas espalhadas, como penas, à superfície das abas e mangas do casaco»[4].

Não sou dado a misticismos nem a superstições. No entanto, a historieta de Folhas de Xisto que mais apreciei foi O Palacete Encantado. Ele aterrava os que nele viviam ou pernoitavam, assombrando‑os com os podres das suas biografias. Ora aí está um palacete moralista e justiceiro!


[1] Cheguei a alguns dos autores em questão pelo punho de A. M. Pires Cabral — para ser preciso, por via de Os Cantores do Douro, um fragmento do livro Por Esta Terra Adentro (Páginas Trasmontanas) que é um verdadeiro ato de serviço público. Cf. CABRAL, A. M. Pires, Por Esta Terra Adentro. Páginas Trasmontanas, 1.a edição, Lisboa, Âncora Editora, 2018, pp. 299‑320.

[2] CORREIA, João de Araújo, Horas Mortas, 2.a edição, Lisboa, Tertúlia de João de Araújo Correia e Âncora Editora, 2017, p. 7.

[3] CORREIA, João de Araújo, Folhas de Xisto, 4.a edição, Lisboa, Tertúlia de João de Araújo Correia e Âncora Editora, 2018, p. 23.

[4] CORREIA, João de Araújo, últ. ob. cit., p. 27.

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