Na sequência da visita que fiz ao Museu de Arte Moderna e Contemporânea de Estrasburgo, aqui trago umas notas a propósito de obras que de maneira particular me tocaram. Tenha o leitor presente que a escolha obedece à sensibilidade e ao critério de um diletante, de alguém que aprecia a arte e a sua história, mas que acerca delas carece de ciência e de saber estruturado.
1. Para ver com os olhos

Gustave Doré (Estrasburgo, 1832 – Paris, 1883), dono de uma notável carreira como ilustrador, almejava também ganhar consideração enquanto pintor. Porquanto entendia que a crítica francesa não valorizava devidamente a sua empresa pictórica, anuiu à proposta que dois negociantes de arte, Fairless e Beeforth, lhe fizeram: abrir em Londres uma galeria para, em permanência, mostrar os seus trabalhos.
A peça de maior cartaz aí exposta foi Cristo Deixa o Pretório, um óleo de grandes dimensões que Doré pintou entre 1867 e 1872 (o artista deixou outras versões dessa obra). Representa Cristo a sair do pretório — depois de ter sido condenado a crucifixão —, antes de se dirigir para o Calvário, o lugar situado fora das muralhas de Jerusalém onde viria a ser crucificado. O episódio em causa está descrito no Evangelho de Mateus (cf. 27, 27‑31) e no de Marcos (cf. 15, 16‑20)[1].
A tela impressiona pelo tamanho (609 × 914 centímetros) e pelo dramatismo que dela ressuma. Olha‑se para o quadro e num pronto se sente o peso da desgraça, de tragédia que ocorreu e de outra que aí vem. Doré transpôs para a pintura a teatralidade evidenciada nas suas ilustrações, nomeadamente nas que tinha feito para a Bíblia.
Percebe‑se o desassossego da turba, que os sumos sacerdotes haviam acirrado contra Jesus. Os soldados têm dificuldades em controlar a multidão. Há expressões de ódio e de soberba, e também de dor. Está à vista o sofrimento de Maria e das mulheres que a acompanham, na parte inferior direita da composição. A cruz é sinal do suplício adveniente. Eis uma pintura‑espetáculo, um quadro para ver com os olhos.
No centro da composição, Cristo desce as escadas, uma mancha de luz acompanha‑o. Para trás fica Pilatos e também os sumos sacerdotes, que tanto empenho tinham posto na punição do filho de Deus.
Este parece ser o único personagem cujo olhar remete para fora da pintura. A fim de troçarem dele (rei dos judeus), os soldados fizeram‑no vestir um manto vermelho, puseram‑lhe uma coroa (de espinhos) na cabeça e uma vara (que evocava um cetro) na mão. No arranjo de Doré, Jesus já traja de branco, usa as suas próprias roupas e, dos ditos símbolos de poder, apenas guarda a coroa. Será, afinal, o Jesus que se revela como verdadeiro rei, aquele que entrega a vida para salvar o seu povo.
2. Para ver com emoção

Pouco consegui saber sobre Ernest Lincker (Estrasburgo, 1883 – Frankfurt, 1935) e A Morte da Mãe (1912), óleo exposto no museu de arte moderna e contemporânea da sua terra natal. A falta de materiais de referência talvez se deva à destruição, em 1944, de grande parte dos trabalhos do artista.
Sei, porém, que me emocionei mal vi o quadro. Não se trata de sucesso que mobilize as massas — ao invés do que sucede em Cristo Deixa o Pretório, o drama bole somente com algumas almas.
Não há cruor nem chagas. Mesmo assim, causa mossa aquilo que se vê no leito de morte: o corpo da mulher, a cabeça já fora da cama, o braço que envolve uma criança; a figura, de costas para o espetador e de braços ao alto, que pede ajuda ou atenção. O dramatismo da composição é assaz reforçado pela presença de outro miúdo, ao pé da cama, com uma expressão no olhar que tenho dificuldade em definir, mas que me aflige. A senhora Morte, feia como convém, está presente, a mão que leva ao peito parece denotar que também ela se condói.
3. Para ver com os olhos e com emoção

Christian Botale Molebo nasceu em 1980, no Zaire (atualmente, República Democrática do Congo), vive e trabalha em Estrasburgo. Tanto para a obra plástica como para as artes de palco colhe inspiração na memória coletiva de África e nas recordações que tem do seu país natal.
Ilustra‑o Cabeças dos Hereros e dos Namas, um quadro de 2021. Levado a cabo pelo colonizador alemão, o genocídio dos Hereros e dos Namas, povos do Sudoeste de África, começou em 1904 e durou alguns anos. A galeria de horrores incluiu mutilações e decapitações. Muitos crânios seguiram para Berlim, seriam usados em experiências que visavam demonstrar a superioridade dos brancos relativamente aos negros.
Numa tela que é também um bonito registo etnográfico, Christian Botale Molebo resgata cabeças e biografias perdidas, bota a cor e cria novas identidades.


4. Para ver com a razão

Bertrand Lavier nasceu em Châtillon‑sur‑Seine, em 1949. Expressa‑se por meio da pintura, da escultura e da instalação e amiúde desfaz as fronteiras existentes entre essas formas artísticas. Sobrepõe objetos (por exemplo, um sofá a uma arca congeladora), aplica camadas espessas de tinta a pianos, as suas obras mais representativas impõem‑se pela respetiva materialidade, pela presença física.
Giulietta, de 1993, é um carro — Alfa Romeo Giulietta — que ficou danificado em consequência de um acidente no qual esteve envolvido. Lavier foi vê‑lo à sucata e, verificada a condição que definira previamente (do acidente não terem resultado vítimas mortais), tirou‑o de lá e deu‑lhe títulos de obra de arte.
Marcel Duchamp foi o criador de um conceito, o ready‑made, nos termos do qual um objeto era extraído do seu uso corrente e convertia‑se em obra de arte mediante simples indicação de um artista. Certa vez, comprou um urinol, apôs‑lhe a assinatura «R. Mutt», chamou‑lhe Fonte e apresentou‑o como obra de arte. No que respeita a Giulietta, Lavier fala de ready‑destroyed: a viatura já estava destruída ou, pelo menos, amolgada, ele não andou com martelos a dar cabo dela. Em contraste com o urinol de Duchamp — coisa fria, sem história —, o carro de Lavier foi espaço de vida, de emoções.
Giulietta interpela, provoca a reflexão e gera a interrogação. Pretende lembrar que «Arx Tarpeia Capitoli proxima»? Se parece certo que nos confronta com os excessos de velocidade do nosso tempo e com o receio de sermos vítimas de desastres, para que outras direções aponta? A curiosidade que o automóvel acidentado espicaça não se estará a prepor a tudo o resto, mormente ao pudor?
As perguntas não ficam por aí. Lavier sentiria legitimidade para apresentar Giulietta se, previamente, não tivesse existido o ready‑made de Duchamp? Giulietta é uma obra de arte? Merece honras de exposição num museu que ganhou prestígio e que é financiado por fundos públicos?
[1] Vide, outrossim, o Evangelho de João (19) e o de Lucas (23).