Em Kaysersberg. A obra de Albert Schweitzer

Kaysersberg é uma aldeia bonita, com casario de feição alsaciana. Fui lá na época baixa e em dia útil, não havia multidões. Assim, observando o edificado, pude imaginá‑la nos seus tempos medievais e renascentistas.

Imagem de Kaysersberg

Em matéria de património artístico, o meu destaque vai para o tríptico de madeira, do primeiro quartel do século xvɪ e atribuído a um mestre de Colmar, que se encontra na igreja dedicada à invenção da Santa Cruz. O grupo escultórico da respetiva predela representa Cristo e os 12 apóstolos. No painel central e nos volantes acham‑se esculpidos os episódios da Paixão de Cristo (o elemento central ostenta também um Cristo crucificado). No topo do retábulo, as esculturas de São Cristóvão e de Santa Margarida ladeiam essoutra, colocada em ponto mais alto, de Santa Helena — terá sido Helena a encontrar a cruz em que Jesus Cristo foi supliciado.

Em Kaysersberg almejava sobretudo visitar o Centro Schweitzer, consagrado à vida e à obra de Albert Schweitzer (1875‑1965), médico, filósofo, teólogo, pastor protestante, organista e musicólogo que nasceu em Kaysersberg e morreu em Lambaréné (Gabão), a terra onde havia criado um hospital e passara parte da sua vida.

Schweitzer empenhou‑se na defesa de princípios humanistas, censurou o recurso à arma atómica, foi um animalista e um ecologista avant la lettre. Por aquilo que fez no Gabão, deu bom exemplo do exercício da medicina que está ao serviço de causas humanitárias. Em 1953 foi agraciado com o Prémio Nobel da Paz correspondente ao ano anterior. O Centro Schweitzer é chamativo em virtude da mina de informação que oferece e dos livros que lá se encontram à venda, o resto é irrelevante.

O prócere converteu a «veneração pela vida» em pedra de toque da sua própria existência e em base do seu compromisso com a ecologia, o animalismo e o pacifismo. Poderia utilizar a expressão «reverência pela vida», também ela corresponde ao conceito original, Ehrfurcht vor dem Leben (Schweitzer exprimiu‑se em alemão, vale a pena lembrar que cresceu na Alsácia submetida ao jugo imperial tedesco). Já «respeito pela vida» diluiria o significado da formulação original.[1]

Conforme assinala Sorg, para Schweitzer o ser humano não é um self‑made being, ele não se fez, a vida foi‑lhe dada[2]. Isso atribui‑lhe uma responsabilidade particular perante todos os seres vivos e perante o meio ambiente e daí decorre a negação do especismo, da doutrina que defende a superioridade da espécie humana sobre as outras, nomeadamente a animal.

Deus estendeu a misericórdia ao conjunto dos viventes, mas o cristianismo operou um corte, uma diferenciação entre pessoas e bichos, e deu prevalência àquelas. Em sintonia com as suas teses, Schweitzer questionou mesmo a utilização dos animais e da sua força em benefício dos indivíduos.[3]

É certo que as proclamas de Schweitzer relativas à concórdia continuam a ser pertinentes. Porém, ando tão pessimista com o estado do mundo que dei por mim a considerá‑las votos pios. Embora entenda que devemos pugnar pela paz, já a elevo ao predicamento das quimeras. Extremismos e fanatismos impedem a sua consecução, a maldade dos humanos e as relações de poder tratam do resto. E já nem invoco a renúncia sistemática a soluções de caráter político e diplomático. Fui uma vez a Israel e duas vezes à Cisjordânia e, de todas as convicções que de lá trouxe, a mais forte foi esta: nunca ali haverá paz.

Sou dos que se assustam quando veem a palavra «pátria» escrita com maiúsculas ou com inicial maiúscula, preocupa‑me o pregão nacionalista e nativista da extrema‑direita e, por via do crescimento desta, a respetiva difusão.

Não admira, pois, que tivesse lido com interesse Psychopathologie du nationalisme, um conjunto de textos em que Albert Schweitzer veste farda de psiquiatra e toma o nacionalismo como distúrbio psíquico, como produto da hipertrofia do sentimento de pertença à nação. Assim que esta, no precípuo, se encontra formada, a marcha da alma que lhe corresponde e que a inspirou não cessa, dá lugar a uma excitação progressiva e gera ideias de grandeza e de acossamento que deturpam o sentido da própria nação.[4]

Não foi por acaso que alguns trechos dessa obra crítica do nacionalismo me fizeram recordar posturas e atitudes de André Ventura e dos seus pares da direita radical. «Celui qui pense qu’en excitant les passions il s’attachera les foules comprend vite qu’il lui faut sans relâche entretenir ce feu. Peu importe si les objectifs sont de plus en plus irréels, de plus en plus insensés.»[5] Mais um exemplo: «Ceux qui occupent des fonctions ou des postes en politique ressemblent à ces artistes de music‑hall qui ne peuvent faire autrement que reprendre le refrain qu’entonne la salle et sacrifier le meilleur de leur répertoire.»[6]

Os populistas e a extrema‑direita levam o nacionalismo a um ponto em que ele encarna o desprezo pelo estrangeiro, a negação da viagem — que o indivíduo faz dentro de si mesmo, pelo menos — e do cosmopolitismo.

Ao confrontar Psychopathologie du nationalisme com a realidade, o desencanto e a impotência invadiram‑me. Nas eleições legislativas de março deste ano, o Chega foi o partido que mais deputados elegeu pelos círculos eleitorais da emigração. Quando os resultados do sufrágio foram conhecidos, senti, pela primeira vez, vergonha de ser emigrante. É triste. Muitos daqueles que se fizeram à lida fora de Portugal não discernem as circunstâncias que envolvem a sua própria condição.


[1] Vide, a propósito, SORG, Jean‑Paul, in SCHWEITZER, Albert, Respect et responsabilité pour la vie, edição apresentada por Jean‑Paul Sorg, Paris, Flammarion, 2019, pp. 9‑10. Nota: Respect et responsabilité pour la vie não é um livro de Albert Schweitzer, é um conjunto de escritos seus que o responsável pela edição, Jean‑Paul Sorg, selecionou.

[2] SORG, Jean‑Paul, ob. cit., p. 19.

[3] Atente‑se, por exemplo, nos sermões que proferiu na Igreja de São Nicolau, em Estrasburgo, no dia 13 de dezembro de 1908 e em 2 de março de 1919 — SCHWEITZER, Albert, ob. cit., pp. 40‑52 e 102‑120, respetivamente.

[4] Cf. SCHWEITZER, Albert, Psychopathologie du nationalisme, texto fixado e apresentado por Jean‑Paul Sorg, Paris/Orbey, Arfuyen, 2016, p. 44. Nota: Psychopathologie du nationalisme não é um livro de Albert Schweitzer, é um conjunto de escritos seus que o responsável pela edição, Jean‑Paul Sorg, selecionou.

[5] SCHWEITZER, Albert, últ. ob. cit., p. 56.

[6] SCHWEITZER, Albert, últ. ob. cit., p. 56.

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