Registos da visita a três igrejas de Metz e um raconto

1. A edificação da Igreja de Santa Teresa do Menino Jesus começou nos anos trinta do século passado, foi interrompida por causa da Segunda Guerra Mundial, reiniciada em 1950, chegou ao seu termo em 1954. O templo, desprovido de transepto, apresenta uma estrutura de eixo único, longitudinal, que semelha o casco invertido de um navio. Grandes arcos ogivais servem de apoio à cobertura e aguentam toda a armação. O emprego do betão armado é conforme ao exemplo de modéstia e de simplicidade de Teresa, freira carmelita descalça. A pinta dos vitrais também respeita o preceito de discrição.

Baixo à valia de peças miúdas e assinalo que, na Capela do Santíssimo Sacramento, me interessei pelo sacrário em forma de sarça ardente e pelo altar de madeira de carvalho cujo registo inferior sugere duas mãos abertas. O episódio bíblico da sarça em fogo não me deixa indiferente. Moisés achou estranho o fenómeno da silva que estava em chamas e não se consumia. Sentiu a presença de Deus, cobriu o rosto, tinha receio de olhar para o Senhor. Eu, católico tantas vezes crítico da Igreja Católica e da sua pulsão ultraconservadora, confesso que sempre me espanto quando vou a igrejas modernas que arvoram formas ousadas e traço audacioso. Aí resgato a presença de Deus e a sua majestade, elas despertam em mim a vontade de o reverenciar.

Ao lado da Igreja de Santa Teresa, ergueram em 1963 uma sorte de mastro com 70 metros de altura, um bastão de peregrino que contrabalança a imagem de bloco maciço proposta pelo edifício devotado ao culto.

Igreja de Santa Teresa do Menino Jesus

2. Ao universo profano vou buscar o fator de cotejo com a Igreja de São Maximino, em Metz. Assim como há equipas de futebol cujo nome ressoa em virtude de no respetivo plantel existir uma vedeta, esse templo atrai curiosos mercê de nele se poderem observar vitrais concebidos por Jean Cocteau.

A igreja reúne matéria de fatura românica, gótica e barroca, a respetiva construção cruzou várias centúrias e terá começado no fim do século xɪɪ. Quanto às vidraças, se é certa a sua excelência e o efeito sortílego que produzem, sobram dúvidas acerca dos propósitos que Cocteau nelas verteu. É legítimo dizer, pelo menos, que o artista recorreu a representações mitológicas e a motivos oriundos de culturas primevas, não europeias.

Quis trazer ao leitor aclarações bem fundadas acerca desta empresa de Cocteau. Não fui capaz, os escritos que consultei só me confundiram. Ainda assim, afirmo que, na minha composição favorita, o vidro do meio apela a Vénus, ao amor, e os que o ladeiam, e ostentam rosas, reforçam tal alvitre.

Igreja de São Maximino, vitral em que Cocteau evoca o amor

3. Em Metz, a Catedral de Santo Estêvão, erguida entre os séculos xɪɪɪ e xvɪ, é a mais rica amostra de arquitetura religiosa. Distingo‑a, e não sou o primeiro nem serei o último a fazê‑lo, pelo verticalismo — que percebi sobretudo quando estava no interior do templo — e pela qualidade e quantidade dos vitrais que a enfeitam (tem quase 6 500 metros quadrados de superfície hialina). Eles justificam que à igreja haja sido outorgada a designação de «Lanterne du Bon Dieu».

Obedecem a programas decorativos diversos, os mais antigos vêm do século xɪɪɪ, os últimos são da atual centúria. Desse mundo pelúcido que transforma a Catedral de Santo Estêvão num dos monumentos prediletos dos Franceses, destaco os vitrais ideados por Jacques Villon, dos anos cinquenta do século xx.

Eles demudam uma capela sem graça num must da visita à catedral. Villon pôs a forma geométrica ao serviço da reprodução de cenas bíblicas. Desde logo, guardo na memória a vidraça de um ajimez alusiva ao primeiro dos milagres de Jesus (a conversão de água em vinho durante uma boda que teve lugar em Caná da Galileia) — evidencia arranjo cromático feliz. O cor de laranja sobressai e encontra‑se declinado em finos matizes.

É igualmente notável, pela estética e pelo significado, o modo como, no vitral dum outro ajimez, Villon traduziu a passagem do Evangelho de João em que o soldado introduz a lança no corpo de Cristo, atingindo‑o numa das ilhargas. Segundo o texto sagrado, os judeus não queriam que, no dia em questão — sábado, jornada solene e de preparativos para a Páscoa —, os corpos dos crucificados continuassem na cruz. Pediram a Pilatos que mandasse partir as pernas deles e que os removesse dali. Os soldados quebraram as gâmbias dos que estavam crucificados perto de Jesus e aproximaram‑se deste. Verificaram que ele já estava morto e não lhe causaram dano nas pernas, mas um soldado meteu‑lhe a arma branca no corpo. Do cadáver de Cristo logo saíram sangue (simboliza a morte) e água (encarna o espírito que é fonte de vida). A morte de Jesus foi, afinal, o mais relevante prenúncio de vida, e eu, pouco dado à interpretação que se perde em emoção, notei que a vidraça em apreço me impeliu a enxergá‑lo.

Quem quiser conhecer as marcas de magnificência da catedral, tem, por conseguinte, de passear no seu espaço intestino. Vista de fora, ela oferece veste gótica e adquire graça particular quando o crepúsculo casa os seus azuis com a pedra amarelada de Jaumont empregue na construção dessa admirável casa de Deus.

Catedral de Santo Estevão, vitral de Villon alusivo ao primeiro milagre de Jesus, a conversão de água em vinho

4. A curta distância da Catedral de Santo Estevão, há uma rua cujo topónimo constitui homenagem a uma mulher de nome ausente nos manuais de História da França.

Marie nasceu em Metz, em 1859, e cedo ganhou sensibilidade à situação dos feridos em combate: acompanhou a mãe na assistência aos que ficaram maltratados em consequência do Cerco de Metz, em 1870. Em 1882, casou‑se com Alfred Sautet e com ele se instalou em Paris. Aí geriram uma marroquinaria.

Durante a Primeira Guerra Mundial, Alfred passava a jornada na loja e, a fim de proceder ao respetivo envio, ela empenhava o dia na procura de tudo o que pudesse convir aos soldados franceses destacados para a frente de batalha (alimentos, tabaco, roupa, livros e exemplares de publicações periódicas…). Com a ajuda do marido e de outras pessoas, despachou milhares de encomendas — que continham os referidos bens, já se vê — para os tropas. Além disso, escreveu‑lhes um sem‑número de cartas de apoio. Tornou‑se a «marraine des poilus» (o poilu era o soldado francês da Primeira Guerra Mundial).

Silenciadas as armas, Marie Sautet auxiliou os militares pobres e aquelas e aqueles que o conflito deixara em estado de viuvez ou de orfandade. A nobre senhora recebeu várias condecorações, mas, por ter sido assaz generoso, o casal não vivia com desafogo financeiro. Alfred morreu em 1935 e as economias que deixou à mulher foram roubadas. Os antigos combatentes vieram em auxílio da sua madrinha, que deles passou a receber uma renda com caráter vitalício. Marie faleceu em 1937 e teve funeral com honras de Estado.


Catedral de Santo Estevão
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