No texto anterior, a referência que fiz a Immo Hopman (o oficial alemão rendido aos charmes de Bruges que, na Segunda Guerra Mundial, não respeitou a ordem que recebera no sentido de bombardear a cidade) apropositou que mencionasse A Missão, novela de Ferreira de Castro.
A respetiva ação decorre numa aldeia da França, durante a Segunda Guerra Mundial. O frade Georges Mounier questiona o superior da congregação religiosa a que ambos pertencem acerca da ordem, dada pelo segundo e fundada em costume internacional, de pintar a palavra «Missão» no telhado do convento onde viviam. Ela salvaguardaria o edifício de ataques aéreos alemães, mas traria consigo uma vicissitude: indicaria em que edifício da terreola funcionava uma fábrica posta ao serviço do esforço de guerra dos Franceses. O imóvel em causa, igual ao da Missão, havia sido construído para que nele se instalassem freiras, mas estas nunca vieram e nele operava a dita fábrica. As letras que protegeriam os treze eclesiásticos residentes no cenóbio poderiam constituir uma sentença de morte para os trabalhadores da unidade fabril — cerca de quatrocentos; juntando os respetivos pais, as mulheres e os filhos, vinha à liça a vida de mais de mil e quinhentas pessoas.
Escrita de modo escorreito, A Missão denota profundo humanismo, já ao recentrar uma atitude crítica, já ao valorizar o ser humano enquanto tal (abstraindo de uma condição que, supostamente, o aproxima de Deus e o torna representante do ente divino).
Publicada pela primeira vez em 1954, a novela permanece atual. As almas que o escritor osselense aí descerra são as almas dos sujeitos de todas as épocas. O melhor e o pior que os indivíduos exibem na narrativa é o melhor e o pior das criaturas do nosso tempo. Mesmo a mim me surpreende o jorrar dos cotejos. Penso, por exemplo, na responsabilidade da Igreja perante a comunidade em que se insere. Se tem um papel notável em vários domínios — o social, verbi gratia —, falhou na proteção de menores entregues à sua guarda e, destapada a panela da pedofilia, deu mostras de mesquinhez ao proteger os abusadores. Como em A Missão, há quem prefira a verdade da batina à verdade dos factos. E penso, em segundo lugar, no meio universitário. Nele conheci gente amoral e um grande número de pessoas para as quais os imperativos de consciência pouco ou nada valem, pessoas que logram converter a sua voz de falsete na voz da instituição cujos quadros integram e que, como os clérigos d’A Missão, são peritas em apresentações enviesadas da realidade.
