Na Idade Média, Bruges foi uma importante praça comercial do Norte da Europa e atingiu os fastígios no século xv. Para a prosperidade do burgo, concorreram os negócios dos banqueiros italianos e também a tecelagem e o comércio a ela associado. Aí residiram os Duques da Borgonha, apreciadores do luxo. Os artistas, Jan van Eyck por exemplo, instalaram‑se na cidade, atraídos por riquezas de vária ordem.
Seguiram‑se tempos de decadência, mercê de problemas políticos e sociais e, sobretudo, do assoreamento da via de ligação de Bruges ao mar. O trato mercantil trocou Bruges por Antuérpia. Por falta de capital e de arrojo, a Primeira Revolução Industrial mal se fez notar.
Embora a cidade tivesse passado o século xɪx embiocada em capa escura, dois fatores promoveram o turismo e o desenvolvimento urbano.
À uma, ranchos de ingleses rumaram para Waterloo com o intuito de visitar o local onde, em 1815, as suas tropas haviam vencido as de Napoleão. Passaram em Bruges e, além de se perderem de encantos por ela, verificaram que o custo de vida era inferior ao da sua terra. Muitos deles, aposentados, acabaram por fixar residência em Bruges.
À outra parte, o jeito lúgubre da terra nessa época fez dela cenário do livro Bruges‑a‑Morta, de Georges Rodenbach, publicado pela primeira vez em 1892. Esse escrito que dá gosto ler, representativo do simbolismo na literatura, despertou vontades de conhecer Bruges, que se viria a tornar um centro turístico importante. Com tradução e apresentação de Aníbal Fernandes, a Sistema Solar publicou o livro em 2013. Eu li e utilizei a versão francesa dada à estampa pelas Éditions Gallimard em 2022[1].
O burgo é, ele próprio, figura da trama. No aviso que precede o romance e é dirigido ao leitor, logo Rodenbach adverte que pretendeu evocar uma cidade e outorgar‑lhe papel de personagem fundamental. Ela vai associada a estados de alma, exerce ascendente sobre quem por ela anda, é senhora que aconselha, dissuade e provoca a ação.
Aqui deixo um resumo do enredo.
Hugues Viane, um viúvo que se mudara para Bruges havia cinco anos, aí vinha levando uma vida retirada, encasulado no seu luto, preso às memórias da mulher com quem casara. Escolhera Bruges em virtude de esta semelhar a morte e de a relacionar com a sua tristeza. A cidade fanada quadrava com a mulher falecida. «Bruges était sa morte. Et sa morte était Bruges. Tout s’unifiait en une destinée pareille. C’était Bruges‑la‑Morte, elle‑même mise au tombeau de ses quais de pierre, avec les artères froides de ses canaux, quand avait cessé d’y battre la grande pulsation de la mer.»[2]
Certa noite, depois de sair de uma igreja, Hugues viu uma jovem cuja parecença com a defunta o enfeitiçou. Obcecado, dominado pelo sortilégio, descobriu que ela se chamava Jane Scott e visitava Bruges para participar, enquanto dançarina, nas representações da ópera Roberto, O Diabo, de Meyerbeer. Hugues e Jane tornaram‑se amantes, ele via nela a reencarnação da finada. O real e o que é imaginado fundiram‑se. A cidade, tacanha e austera, comentava e cobria de opróbrio a ligação em causa.
O Diabo mora nos pormenores, as dissemelhanças entre as duas damas vieram à tona e Hugues acabou por perder a ilusão, percebeu que Jane não era a defunta.
Apreciei o entrecho, a povoação convertida em personagem fundamental, o jogo de símbolos. Rodenbach implicou‑me na trama, levou‑me torcer pela união de Hugues com Jane e, à semelhança do que sucedeu com Hugues, também a mim me deixou desiludido com Jane.
Outro ponto me tocou. O mexerico e a mesquinhez dos habitantes da Bruges dessa época, lestos a impor padrões morais e a condenar a relação entre os dois pombinhos. Valorizo o sossego da terra pequena, mas aflige‑me o vasculhar da vida alheia em que ela é pródiga. Quando decidi trocar Coimbra por Bruxelas, pesaram muito o sufoco no rincão que considerava provinciano e a perspetiva do anonimato, anteparo à coscuvilhice, na metrópole babélica.
Feito o desvio pelo turismo de cariz psicológico, volto à história de Bruges. Durante a Segunda Guerra Mundial, houve ordens, no seio da estrutura militar alemã, para arrasar a cidade. E esta encontrava‑se ao alcance das granadas dos canhões que o exército germânico tinha na zona de Cadzand. Immo Hopman foi o oficial alemão que recebeu ordens para bombardear Bruges. Todavia, seduzido pelas maravilhas do lugar, não as cumpriu e ainda logrou dissuadir as suas chefias de levar a cabo o ataque. Assim pôde Bruges manter as afirmações de medievalidade que fazem dela uma cidade bonita e um ponto turístico de relevo.
As graças da sorte e o interesse que alimento pela obra ficcional de Ferreira de Castro puseram‑me a ler A Missão quando estava a acabar de escrever o presente texto. Nessa novela de cariz humanista gritante, o questionamento de um mandado — in casu, de ordem fundada em uso internacional — solta uma narrativa que descerra a alma humana e dá a ver o melhor e o pior dos indivíduos. À novela do escritor osselense voltarei no próximo texto.
[1] RODENBACH, Georges, Bruges‑la‑Morte, préface de Marc‑Vincent Howlett, [s.l., mas impresso em Barcelona], Éditions Gallimard, 2022.
[2] RODENBACH, Georges, ob. cit., p. 33.
