Molenbeek‑São João é uma comuna de Bruxelas com a reputação manchada, na cabeça de alguns é simplesmente um viveiro de terroristas. Semelhante perspetiva é redutora, é incorreta, a esmagadora maioria dos habitantes dessa circunscrição da capital belga respeita a lei e conforma‑se com o direito.
No século xɪx, Molenbeek registou forte crescimento económico. Se o canal que a borda já era fator de promoção dos negócios, a inauguração, em 1872, de uma estação ferroviária, a Gare do Oeste, concorreu para fomentar o trato mercantil. Fábricas, manufaturas e estaleiros de obras atraíram magotes de gente que procurava trabalho e que precisava de sítio para morar. A partir do fim desse século, a comuna desenvolveu uma política de construção de habitação social.
Visitei a Cité Van Hemelrijck, um dos complexos residenciais erguidos para dar cumprimento ao programa em causa. Foi edificada nos anos trinta do século xx, segundo risco do arquiteto Joseph Diongre. As fachadas que abrem para as ruas, de tijoleira e com fiadas de janelas salientes, são mais bonitas do que aqueloutras que dão para os pátios. O conjunto não é agradável à vista, mas já vi pior. Incomodou‑me a imundície no chão dos dois pátios, não o aspeto dos prédios.
De boa plástica são a Cité Diongre e a Cité De Saulnier, dos anos vinte do século passado, compostos de alojamento social ideados pelos arquitetos que lhes deram nome. Aquela agrupa casas unifamiliares e pequenos blocos de apartamentos. Embora os imóveis estejam dotados de número de polícia, melhor se distinguem por um pictograma, um baixo‑relevo que representa, por exemplo, um animal ou um instrumento de música (a aposição dessas imagens talvez radique na iliteracia de alguns dos seus primeiros habitantes). Quanto à Cité De Saulnier, o conceito estético presente nas respetivas moradias, de tijolo e com embasamento pétreo, parece ser sempre o mesmo. Os suportes das palas dos portais denotam influência da arte nova.
Volto a evocar o passado industrial de Molenbeek, ele condicionou o desenvolvimento da malha urbana da comuna. É credor de atenção o imóvel, forrado com tijolo, onde começou a laborar, em 1836, a Farcy, uma fábrica de moagem. A empresa que a explorava aproveitou‑se da proximidade do canal, que facilitava a chegada dos insumos. Sob céu plúmbeo e depois de ter caminhado numa rua que eu diria habitada pela classe operária da Inglaterra vitoriana, ver esse edifício bem requalificado desanuviou‑me o espírito.
Hoje, Molenbeek é, sobretudo, uma área residencial com muitos estabelecimentos mercantis.
No comércio e na vida de rua, a população árabe fazia‑se notar. Perdi a conta dos homens que trajavam albornoz e calçavam babuchas. As mulheres, embuçadas ou não, mostravam‑se palreiras com os da sua igualha e apudoradas diante do homem ocidental, desviando olhares e recusando que ele as fotografasse. Por todo o lado, drapejavam bandeiras da Palestina. Vi talhos onde só se vende carne halal e cafés frequentados exclusivamente por homens. Um centro de estética tinha o interior a salvo de olhares indiscretos e a fronte carregada de arabescos e de outros motivos dourados. La Maison du Saree não expunha saris na montra, somente um belo conjunto de takchitas.
Em loja especializada na venda de gulodices caraterísticas da Síria, comprei: baclava, uma ambrosia coberta com calda de açúcar ou mel e constituída por vários estratos de massa fina e por miolo de pistácios (era o caso), nozes ou amêndoas; osh al‑bulbul (ninho de pássaro), iguaria estaladiça na qual fidéus envolvem pistácios, de jeito que se cria a forma de um ninho de pássaro; e ballourieh — duas camadas de massa feita com aletria, entremeadas de pistácios (a massa conserva a cor branca, pois o doce não fica muito tempo no forno).
O negócio em pauta semelhava uma caverna de Ali‑Babá. Suspensos nas paredes, encontravam‑se escudos, cimitarras e também espingardas com embutidos de madeira e enfeites prateados. Tirante os produtos de confeitaria, ali se vendiam bordados com imagens de templos e de paisagens orientais, conjuntos de xadrez cujo tabuleiro ostentava embutidos de madrepérola, bandejas, também elas com incrustações de nácar, estrambólicos jarros de metal e flamantes serviços com os utensílios próprios para servir e beber água do poço de Zamzam.
A maison communale, construída nos anos oitenta do século xɪx, denota estilo eclético, com relevante influência do vocabulário clássico. Foi concebida por um arquiteto do município, já por motivos de ordem financeira, já porque, conhecedor do dia a dia da instituição, se pensava que ele faria as escolhas adequadas às necessidades da autarquia. O sentido estético fica preso no pavilhão circular — dotado de belvedere — de que saem as duas alas do imóvel.
Assinalo dois edifícios diante dos quais provavelmente se caminha sem parar. São vítimas da sua localização e, no caso do segundo, do estado em que se encontra. O bloco principal e os corpos laterais da Igreja de São Sava, templo entregue ao culto da comunidade ortodoxa sérvia, unem‑se num todo sóbrio e bem‑proporcionado. Quanto à casa que o arquiteto Julien Roggen concebeu para si próprio na terceira década do século xx, equiparo‑a a pessoa humilde, mas com substrato. As paredes estão deslavadas, daí parece ressair tristura. Mas não é tristura, é nostalgia: os motivos geométricos, a boa estética e o signo distintivo da art déco estão lá. Dois marmanjos quiseram conhecer a razão de ser do meu interesse por aquele imóvel. Quando lho expliquei, olharam‑me como se eu fosse uma criatura bizarra. Não cabe dúvida — nesta vida, entre quefazeres e ecrãs de smartphones, muita alma passa ao lado das coisas instrutivas e daqueloutras cuja beleza não é evidente.
Vernaculismo e graciosidade inconteste tem‑nos o Castelo do Karreveld. Situados num parque, o alcácer e as suas dependências formam um conjunto, onde o tijolo prepondera, típico da arquitetura brabantina.

Bendita seja a arte da escultura, responsável por converter alguns campos‑santos em gliptotecas credoras de visita. É o que sucede no cemitério de Molenbeek‑São João, onde topei trabalhos de fina art déco e produtos de bela estatuária, principalmente representações de mulheres a exprimir dor pela morte de alguém. Bem assim, há um monumento, caraterístico da arte nova, com firma de Victor Horta. Saliento ainda, numa capela neogótica, o vitral em que Santo António segura o Menino Jesus nos seus braços.

Fora do globo de sepulturas que me cativaram por razões artísticas, menciono os túmulos de barqueiros, que se fixaram nestas terras por causa da proximidade do canal.
A Igreja de São João Batista, concebida por Joseph Diongre, levantada em 15 meses e aberta ao culto em 1932, é um edifício estranho, art déco. A sua estrutura — sobrevestida, em parte, com pedra branca de Brauvilliers, na França — é de betão, material empregue a fim de limitar os custos de construção.
Gostei, em especial, do interior do templo, do efeito criado pelos arcos parabólicos que o armam, do cromatismo nos vitrais que permitem a entrada da luz e dos jogos de cor e luz que ele introduz na igreja. Agradou‑me o revestimento de mármore que forra o registo inferior das paredes e dos arcos parabólicos.

A igreja é frequentada, principalmente, por católicos de raiz africana, tal era notório na composição da assembleia que assistia à missa. O coro, composto quase só por mulheres negras, entoou diversos cânticos em dialetos de África, cânticos que os fiéis podiam seguir, pois as respetivas letras estavam impressas em folhas de papel. Associei‑me ao júbilo reinante, exteriorizado por coristas e por outros fiéis, e, saracoteando‑me, disse ou cantei: «Nkembo na tata, alleluya/Nkembo na Mwana a/Nkembo na Elimo o, alleluya/ Nkembo na Elimo o, alleluya.»
Terminada a cerimónia, senti‑me abençoado. O ofício divino tinha sido benfazejo para a alma, cativara olhos e ouvidos, trouxera‑me uns rudimentos de etnografia africana. E espero que Deus perdoe os meus pecados, a sensualidade que vi nos bamboleios de uma preta que exibia formas primorosamente torneadas.
Tudo isso deu‑me um suplemento de espírito que aligeirou o desconsolo procedente do que vi no largo situado defronte da igreja e nas ruas que a esta adjazem: pessoas que pareciam saídas do universo dickensiano, quasímodos, excrementos de pássaros e lixo, bastante lixo (sacos de plástico, pedaços de móveis de madeira, caixotes, embalagens de piza, latas e garrafas…).
Por agora, é tudo. Guardo para outro texto as impressões decorrentes da minha visita a três museus de Molenbeek‑São João.